Penso que a atividade principal de um médico é a escuta. Com o tempo e a experiência, passamos a ouvir as queixas não ditas e a auscultar no corpo dores não nomeadas. Foi a partir do meu anseio de escuta que o grupo NARRATIVAS foi criado. O objetivo era passar do atendimento individual para o trabalho em grupo, levando informação sobre temas comuns à coletividade. Em função disso, passei a fazer reuniões com líderes da comunidade que trouxeram demandas em que eu poderia ser útil.
Em uma das reuniões, encontrei a Coordenadora Pedagógica do Nossa Ciranda, Giane Garcia, que carregava consigo o anseio de fala e o desejo de encontrar um local em que os educadores tivessem voz, onde se sentissem acolhidos para conversar sobre seus desafios diários. A partir disso, iniciamos reuniões semanais com os educadores do Programa, sediado no Centro Cultural Monte Azul, que atende cerca de 210 crianças no contraturno da escola, com idades entre 6 e 14 anos. Durante os encontros, conversamos sobre diversos temas pertinentes às faixas etárias atendidas, e cada educador trouxe exemplos práticos que vivenciava no dia a dia da escola, tornando a discussão rica e proveitosa não só para nós, mas também para as crianças que estavam em discussão.
Sabemos que crianças são seres dependentes, e que levam para a escola dores e sofrimentos que se manifestam em comportamentos muitas vezes desafiadores para quem cuida. O profissional da educação que percebe o sofrimento por trás do comportamento carrega o privilégio e a responsabilidade de poder ser um vetor de transformação, de servir de inspiração, de participar para sempre da memoria afetiva de uma pessoa. O que se sente por um educador que mudou sua vida é muito grande e muito importante para que o professor não se aproprie dessa possibilidade. Até porque, nos dias de hoje, cada um que provoca uma transformação positiva no mundo é um herói.
Educar exige, cada vez mais, que estejamos atualizados com a realidade desses jovens. Temas como autoestima, puberdade, menstruação, sexualidade, identidade de gênero, educação sexual, prevenção ao abuso sexual, feminismo, bullying, traumas, violência doméstica, maus tratos, uso de drogas, pedofilia, pornografia, suicídio, luto, transtornos alimentares e diversos outros fazem parte do cotidiano de quem trabalha em uma escola. Não se pode fechar os olhos para a contemporaneidade do mundo, para as novas formas de afeto, para os desafios da tecnologia e da exposição, para o desejo de pertencer ao grupo e para o desejo de ser aceito pelo que se é (e não pelo que a sociedade espera que sejam). Às vezes para aprender é preciso desaprender, só assim uma nova ideia ou um jeito novo de ser pode te habitar. Penso que se o professor é capaz de perceber os ensinamentos das novas gerações, sem abandonar seu papel de educar, o futuro poderá ser mais justo. Afinal, saberes saudáveis tem mais chance de criar adultos equilibrados. Para isso conhecimento, método, habilidade, gentileza, empatia e escuta devem fazer parte da bagagem de quem ensina.
O que se observa nos grupos é que a forma como cada um de nós reage a determinadas situações traz informações sobre quem somos. E mostra claramente como nos identificamos com uma ou outra criança a partir da nossa história pessoal. É assim que professores ensinam aos alunos sobre a vida, mas aprendem através deles sobre si mesmos, já que o aluno lembra o professor da criança que ele foi. O grupo ativa a curiosidade da pessoa sobre si, e quanto mais nos interessamos por nós mesmos, mais nos interessamos pelo outro. Autoconhecimento na mais pura forma. Mas o profissional que cuida precisa perceber que ele também é humano, com necessidades e dores, que geram atitudes e comportamentos. Isso evita que cuidadores em geral sejam sugados emocionalmente para biografias que não são suas, causando a fadiga de empatia que leva à perda da capacidade de cuidar.
Meses depois de tantos encontros, agora quinzenais, o compartilhamento que inicialmente era de conflitos e desafios, passou a ser também de sucessos e superações. Os educadores mostram confiança e admiração crescentes uns pelos outros e trazem experiências concretas em que põem em prática as reflexões que foram feitas no grupo. Após a conversa sobre luto, um dos educadores trabalhou de forma tocante, a morte de um animalzinho de estimação de um de seus alunos, permitindo que a turma toda expressasse, através do enterro do bichinho, a tristeza pela perda de familiares para a pandemia. Acompanhamos também a história de uma criança que reagia chorando muito frente a situações aparentemente corriqueiras, como ter seu lápis pego por outra criança. Falamos do quanto ela expressava dor quando seus limites eram ultrapassados, ainda que simbolicamente representados por um lápis. A sensibilidade da educadora permitiu que a criança verbalizasse o quanto apanhava em casa, mostrando que ela, como muitos, é uma sobrevivente, e lhe falta pele emocional para suportar situações aparentemente banais. Ninguém foi feito para tolerar a maldade, e nem sempre podemos mudar a realidade, mas podemos dar afeto quando compreendemos por que a criança reage de uma determinada forma a partir do sofrimento. São inúmeras histórias reais, lindas, sensíveis que mostram que estamos todos trilhando um caminho de transformação.
A sensação que fica para mim é de gratidão.
Muito obrigada!
RENATA BERRETTINI
“Nesse relato, ressalto a importância do trabalho que a Doutora Renata está desenvolvendo com o grupo de educadores do Nossa Ciranda Monte Azul e Escola de Música.
Quando retornamos as atividades presenciais, percebemos que as demandas de gravidez na adolescência, drogadição, depressão, luto e tantas outras haviam aumentado com nossos atendidos.
Renata e a Cristina foram nos fortalecendo para atender essas demandas no pós pandemia. Nesse processo de vários encontros, fomos percebendo o quanto se tinha uma necessidade de cuidar dos cuidadores. Assim, iniciamos um novo momento trabalhando os traumas que cada um de nós carregamos de nossa infância, cuidar da nossa criança interior.
Toda a equipe do Nossa Ciranda Monte Azul agradece imensamente o trabalho que Doutora Renata Berrettini e a Aconselhadora Biográfica Maria Cristina realizaram”.
Gratidão, Giane Garcia