
Através das últimas descobertas da neurociência sabemos que o cérebro nasce como rascunho, imaturo, e que ele se aperfeiçoa nos primeiros anos de vida. Consequentemente, na primeira infância o cérebro ainda não está maduro para o aprendizado intelectual que necessita dele como órgão para o raciocínio e guardião da memória. Ao contrário: ele está permeado por processos vegetativos, criativos (as sinapses estão se formando, as moleiras estão abertas, ele está crescendo!) Por isto a criança pequena ainda não pode ter a tranquilidade para a reflexão e autoconsciência, mas ela é todo movimento e não tem consciência de si mesma. Ela absorve como uma esponja o ambiente ao seu redor e aprende através da imitação. Imitar é estar entregue ao ambiente de forma inconsciente, movimentar-se conforme um exemplo, fazer.
O brincar é a expressão deste estado imitativo da criança. Nos primeiros três anos a criança aprende a andar, falar e pensar imitando inconscientemente as pessoas que a rodeiam. O seu primeiro brinquedo é o seu próprio corpo que ela domina passo a passo, vencendo a força de gravidade e erguendo-o na posição ereta. Depois nas brincadeiras de “fazer de conta”, ela imita o fazer dos adultos. Quanto mais a criança brinca neste estado inconsciente, entregue ao movimento, ao fazer, tanto melhor o cérebro pode se desenvolver. Ele precisa que o deixemos em paz. Aí sim ele será uma ferramenta madura para a criança iniciar o aprendizado escolar depois dos seis anos completos.
A ferramenta de educação mais eficaz na primeira infância é o exemplo. Criar um ambiente para a criança digno de ser imitado, um ambiente de confiança, onde ela pode se entregar com alegria ao brincar, imitando ações de adultos que fazem sentido perceptível através dos gestos, é o que podemos oferecer de mais valioso a ela.
Brincando, a criança explora o mundo, descobre os seus segredos e se descobre. Ela imita tudo que está ao seu redor, não só os gestos e comportamentos dos adultos, mas também as outras crianças, os animais e até os materiais e brinquedos que a envolvem. Tudo gera um movimento dentro dela, como se fosse um eco.
Como é este mundo nos dias de hoje? Os adultos pouco se movimentam perto das crianças. Com um aperto de botão ligam a máquina de lavar roupa, a batedeira de bolo, a tela da TV. Antes as crianças observavam o trabalho doméstico e participavam dele. Assim elas tinham vivências de trabalhos que fazem sentido para a manutenção da vida. A mãe buscava as hortaliças no fundo do quintal, lavava-as, cortava-as e colocava na panela, acendia o fogão de lenha para cozinhar e depois servia a refeição. A sequência destas ações tem uma lógica e tudo faz sentido. A criança observando isto vivencia a interligação entre as coisas e se sente acolhida, fazendo parte do mundo que é cheio de sabedoria. Ela vivencia que uma ação é consequência da outra e que a sequência de ações tem um objetivo.
Além disto, a criança tem uma série de vivências sensoriais: na horta ela vê a ordem da plantação, sente a terra fofa debaixo dos pés descalços, sente o cheiro da terra fresca e das hortaliças, ouve o som dos pássaros ou da conversa dos adultos. Entrando na cozinha sente o calor do fogão de lenha, o cheiro do fogo, ouve o estalo das madeiras queimando e sente o cheiro dos alimentos. Depois degusta a deliciosa refeição.
Hoje as crianças ficam em instituições especializadas, higienizadas, onde quase tudo que tem a ver com a vida do ser humano e que faz sentido perceptível é mantido longe dela. A limpeza é feita quando as crianças estão no parquinho, a cozinha industrial é lugar proibido, a manutenção é feita aos fins de semana, os bebês são trocados no fraldário. O que a criança pode imitar?
No âmbito familiar as crianças ainda têm algumas vivências do trabalho do adulto, mas muitas vezes os adultos estressados preferem que elas fiquem fazendo joguinhos no computador ou assistindo TV para não atrapalhar. O que acontece quando a criança, entregue inconscientemente aos movimentos do mundo, assiste TV? Ela precisa ficar quieta, o seu olho não se move, mas as imagens na tela se seguem tão rapidamente que é impossível se ligar com elas, muito menos de imitá-las. Depois de algumas tentativas a criança desiste, se desconecta. Mas o movimento frenético das imagens atua na sua alma. Ela precisa descarregar esta agitação e se torna hiperativa, agressiva, insuportável. Quais vivências sensoriais a criança tem na frente da TV? Ela vê uma luz forte piscante, ouve sons eletrônicos estridentes, não sente cheiro, nem tem sensações táteis. A formação orgânica de seus sentidos está gravemente prejudicada. E o desenvolvimento cognitivo? Aos poucos ela vai entender o conteúdo apresentado na TV: as estórias dos desenhos animados, as notícias, as novelas e filmes. Mas estes conteúdos estão fora da vida real. Através deles ela não consegue se sentir acolhida e conectada com a vida verdadeira.
Este afastamento da vida é reforçado ainda pelos jogos eletrônicos. Neles a criança se identifica com figuras virtuais que vivem num mundo virtual maravilhoso, muito mais atraente do que o mundo real. Como queremos formar cidadãos responsáveis e atuantes de forma positiva na vida real desta maneira?
Se queremos repensar as instituições de educação infantil, temos que partir da seguinte pergunta: como podemos transformá-las para oferecermos às crianças um lugar de desenvolvimento, respeitando as suas características mencionadas acima: aprender pela imitação através do brincar livre. Pensando assim as instituições de Educação Infantil devem ser lugares onde as crianças encontram adultos trabalhando, fazendo coisas que tem sentido para a vida do grupo ou da comunidade escolar. Devemos criar um ambiente onde as crianças podem perceber este sentido nos gestos, na sequência das ações e podem participar disto.
A cozinha é o coração de um lar. Na situação atual da sociedade, onde a criança passa cada vez mais horas na escola e onde as famílias cada vez menos suprem a necessidade de aconchego e convivência, as instituições de educação infantil precisam preencher esta lacuna e oferecer o aconchego de um lar. Assim a cozinha poderia se tornar um lugar central de convivência e do fazer.
Na creche da Associação Comunitária Monte Azul, cada sala tem um canto com pia e fogão, onde a professora pode cozinhar com as crianças. As crianças podem observar os gestos da professora e imitá-la, ajudando-a ou brincando estimuladas por este trabalho. A arrumação da sala e limpeza do dia-a-dia é feita pela professora junto com as crianças. A professora faz trabalhos manuais dentro da sala, enquanto as crianças brincam. Algumas querem trabalhar também e recebem tecido, linha e agulha (quando tem acima de quatro anos), outros ficam brincando e a atmosfera criada pelo trabalho artesanal do adulto irradia para o brincar das crianças. Os bebês são trocados dentro da sala, não em fraldários separados. No espaço externo, a professora cuida das plantas junto com as crianças, lava os panos com os quais brincam de casinha ou as roupinhas das bonecas. As crianças que não querem ajudar a professora, sempre têm materiais ao seu alcance para brincar. Dentro da sala tem a casinha das bonecas, o canto da construção, a feira, os animais, a cesta com panos de várias cores e tamanhos, sementes de diferentes formas, conchas, pedras, raízes, tudo que a natureza nos oferece.
Aliás a natureza é um parceiro inestimável da educação infantil. Os materiais com os quais as crianças brincam quando vem da natureza, incentivam a fantasia infantil e facilitam a sua transformação constante naquilo que a criança imagina. Os diversos elementos nunca são idênticos proporcionando assim maiores desafios. Usamos p.ex. toquinhos cortados de galhos de arvores e lixados manualmente pelas crianças para construir torres, pontes, estradas, casas etc. o desafio é bem maior e as possibilidades são bem mais diversas do que usando cubos de plástico ou brinquedos de encaixe. Os materiais da natureza promovem também o desenvolvimento dos sentidos, pois oferecem várias texturas, cores, cheiros, pesos e formas. Eles favorecem novas descobertas e surpresas a cada dia. Neste brincar livre com fantasia observamos não somente a imitação, mas a transformação daquilo que a criança vivencia através da sua imaginação, estimulada pelos elementos da natureza.
Um último elemento que contribui para que as crianças se desenvolvam de forma saudável e criam autoconfiança e confiança no mundo é a repetição. Tem ações que fazem parte do dia a dia, como cozinhar, limpar, cuidar das plantas etc. outras que qualificam os dias da semana, e outras que marcam as estações do ano. As crianças pequenas amam a repetição, pois através dela elas se sentem conectadas com a natureza que também se desenvolve em ciclos. Assim constroem aos poucos sua percepção do tempo e do ritmo e fortalecem a autoconfiança e força de vontade.
Texto de Renate Keller Ignacio, educadora, presidente e co-fundadora da Associação Comunitária Monte Azul, membro da Aliança pela Infância e da Rede Nacional Primeira Infância.