

Esta entrevista aconteceu no curso Mainumby, em 24/09/2022, cujo tema foi “Desenvolvimento Comunitário”. A entrevistadora foi Renate Keller Ignácio, presidente e co-fundadora da Associação, e a entrevistada foi Graça de Miranda, moradora da comunidade Monte Azul há mais de 30 anos, mas Renate também cooperou com o depoimento, finalizando o evento.
Renate pede para que Graça relate sobre sua vida na comunidade Monte Azul.
Quando cheguei na Monte Azul não conhecia ninguém, minha mãe voltou para o Ceará e aprendi a viver sozinha. Minha mãe levou dois de meus filhos e fiquei com um. […] Ele adoeceu muito. Conheci a creche e ali ele ficou. Ele cresceu na Monte Azul […]. Tive depois uma menina que nasceu no ambulatório da Monte Azul. Aqui vivi muito tempo e durante este período conheci Paulo, Renate e Ute (os fundadores da instituição) e muitos moradores, então fui acompanhando a urbanização.
Na época a comunidade era precária. Uma única moradora tinha água e puxávamos dela. A minha casa não tinha estrutura. Fomos vivendo assim. Então, começamos a nos mobilizar […] Onde mais nos mobilizamos foi quando houve uma tragédia na comunidade e tivemos a perda de vida de uma criança que morreu soterrada. Muitas vezes na reunião que organizávamos tinha uma ou duas pessoas, mas mesmo assim começamos a correr atrás de ajuda para não ter mais tragédia na comunidade. Foram feitos muros de arrimo em sistema de mutirão e doação. […] Lutamos muito para chegar a ter condições melhores. […] Precisou persistência para que o grupo não fosse desacreditado. Quando chegava o final de semana saíamos de casa em casa para explicar aos moradores por que lutávamos. […] com o tempo conseguimos cinco megafones e falávamos de canto a canto na comunidade. Convidávamos moradores a participar, depois juntávamos todos para falar e fazer forró de pé de serra.
[…] Nós íamos em muitas reuniões da prefeitura em grupo de moradores e com isso conseguimos o projeto no papel, e também a possibilidade de um engenheiro acompanhando. Liberaram a verba no governo da Erundina. Não tínhamos nada, nem papel nem engenheiro. A Monte Azul atuou. […] A engenheira fez os desenhos de cada rede de esgotos. A verba saiu em 23 a 25 de dezembro. O grupo não tinha documentos. […] Não tínhamos CNPJ para poder abrir conta para receber a verba[…] A Associação Comunitária Monte Azul sempre do nosso lado, ajudando inclusive com a recepção da verba. O grupo não tinha estrutura para atender as solicitações, o galpão, o contador e profissionais a serem contratados e novamente contamos com a Monte Azul. Em janeiro a obra tinha que começar. […] Então fomos falar com os moradores sobre a verba que saiu para o material e alguns poucos profissionais. Trabalhamos em sistema de mutirão. Tinha vez que o mutirão tinha cem pessoas, outras vezes tinha duas. Mas tínhamos que trabalhar de qualquer jeito. Havia lanche coletivo trazido pela comunidade para que os trabalhadores se alimentassem, tinha vez que não tinha nada. Meu filho tinha três anos quando comecei a levá-lo para os mutirões, ele levava as latinhas vazias par encher de terra.
Hoje me orgulho de ter participado disso, olhar minha casa e não ver o córrego. […] Quando abro a porta de minha casa e vejo uma piscina para as crianças onde antes era uma mina poluída fico muito feliz.
Muitos moradores novos acham que tudo aquilo caiu do céu. Mas não, tudo na vida precisa de cuidado. Hoje […] vejo coisas deteriorando. Penso que poderia fazer mais, mas acho que fiz minha parte para meus filhos. Hoje meus netos usufruem disto. […]muitas pessoas que trabalharam ela comunidade já faleceram, mas seus netos usufruem da luta. Isto é tão importante. O que fizemos e foi conquistado pela comunidade precisa ser preservado por ela.
Renate completa: —Agora quero contar de meu ponto de vista e sobre o que aprendemos, quais as ferramentas usamos para transformar a comunidade. E o que para nós foi o alimento e a base para este caminho de 44 anos. Eu sou formada em educação artística, mas já tinha uma experiência em creche, quando eu e meu marido fomos convidados para atuar aqui. Meu marido é marceneiro. Tinha um grupo de crianças e conheci as famílias fazendo visitas domiciliares. Aí eu vi a fragilidade da situação de moradia e das crianças desatendidas. Estavam fechadas no barraco, se virando ali para se alimentar. Uma situação de outras crianças maiores trabalhando muito para ajudar as famílias. Eu também tinha crianças pequenas.
Enquanto isto Ute escreveu um livro que se chama “Crianças na Favela”. Foi publicado na Alemanha. Ela foi convidada para dar palestras. Na volta viajou para Bogotá e conheceu o trabalho de um padre com moradores da comunidade e educadores. Quisemos fazer igual e então iniciamos um cursinho com mais ou menos 10 ou 15 mulheres da comunidade para esta tarefa. Tinha um grupo com pessoas mais jovens e outro de mulheres.
Eu levei para elas a sabedoria da Pedagogia Waldorf, contando do desenvolvimento infantil e das características das crianças pequenas e vimos que todas elas brincavam na infância do jeito que se brinca na Pedagogia Waldorf. Brincavam de imitar adulto e com elementos da natureza ou brinquedos feito deles. Muitas delas já tinham ido trabalhar na roça sempre junto da família. Na verdade, este cursinho foi a sementinha que hoje é este curso grande, o Mainumby. […] Me lembro de perguntar o que se cantava na infância delas, não sabiam, mas à medida que eu cantava elas lembravam e expandiam o repertório. Então virou um princípio do nosso trabalho o fato de que a parte intelectual precisa de seu complemento no fazer e na parte artística e que isto tem o mesmo valor. Se neste curso vamos falar da desigualdade, eu falo agora da igualdade. O que move o movimento comunitário é que no fundo todos percebemos que somos iguais. Todos temos nossa sabedoria particular e por isso somos diferentes, mas no cerne todos somos iguais. Eu que venho de uma família de classe média com uma família inspiradora, eu desenvolvi o lado do pensar, mas no lado do fazer (que a Graça demonstrou) e da persistência eu posso aprender. Fazer tem o mesmo valor que o saber elaborado. […] Atualmente há esta lamentável desvalorização do trabalho manual. Quem trabalho no campo ou como pedreiro tem menos valor que quem faz faculdade, mas na verdade tudo tem seu valor. Revendo minha vida agora eu vejo que fui uma mulher como todas as outras; e as mulheres da favela percebiam isso e isso nos aproximou cada vez mais.
Começamos olhando que as crianças não tinham o necessário. Minha motivação foi ter tido uma infância feliz e visto que existem crianças que não têm isto. Só mais tarde aprendemos a teoria, então, no início fazíamos segundo nossa motivação. Depois fomos agregando conhecimento.
No livro de Marshal Rosemberg, ele diz que para a comunicação pode ser utilizado um método simples, com quatro passos simples para entender, porém realiza-lo é difícil:
Passo 1: olhar a situação objetivamente, ou seja “- Como eu as percebo?”
Passo 2: Eu vendo as situações me pergunto- “Quais são os meus sentimentos (podem ser alegres, triste…)?”
Passo 3: Me questiono- “De onde vem o sentimento?” O sentimento nasce de mim por causa de outros sentimentos e minhas necessidades. Estou com raiva, por exemplo, porque tenho necessidade de algo. Quando se fala assim tornamo-nos vulneráveis.
Passo 4: fazer uma sugestão para a questão, isto é, “-Eu gostaria que …”.
[…] Uma outra inspiração de conhecimento para mim bem importante foi que inconscientemente eu percebi que ser professora é ser artista, trabalhar no social é ser artista. […] e no processo de construir um curso para estes profissionais, temos processos artísticos que colocam o ser humano na sua integralidade. Por exemplo pode-se aprender que é possível haver arte no ouvir e no falar, no momento certo, em uma conversa com as mães das crianças que atendemos. […] a arte faz com que o ser humano seja participativo. Ele não é só força de trabalho, Ele é um ser humano que está dentro da materialidade e tem muitos aspectos. E pode transformar este mundo num mundo melhor.